A década de 50: anos dourados

do início ao fim
9 min readJun 5, 2023

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Na década de 1950, o Brasil vivia os chamados “anos dourados”, período compreendido entre os anos de 1945 e 1964. Em especial, a década de 1950 é considerada o auge do período, sendo marcada por diversas transformações nas esferas sociais, econômicas e culturais do país.

A partir do segundo mandato de Getúlio Vargas e a ascensão de Juscelino Kubistchek à presidência, o país viveu um período de intensificação das políticas desenvolvimentistas, como foco em tornar o Brasil a “terra do progresso” e a “nação do futuro” (BRIGLIA, 2010).

O otimismo pós-guerra e fim da ditadura de Vargas impulsionou uma era de relativa liberdade para o país e de investimento massivo no setor industrial, com a abertura para o capital estrangeiro promovida pelo Estado. Consolidava-se, portanto, um ideário nacionalista que buscava construir um novo e moderno Brasil, profundamente influenciado pelo modelo de “desenvolvimento” das grandes nações mundiais.

Nesse cenário, a mídia assumiu um papel central na construção da identidade nacional e na difusão dos valores e papéis sociais que deveriam reger a “nova” sociedade brasileira. Como referenciais de comportamento, os jornais e, em especial, as revistas femininas foram fundamentais na manutenção das relações de gênero e na construção de um ideal de mulher “moderna”.

Nos anos dourados, o clamor pela modernização e progresso foi acompanhado, contudo, por um movimento de retorno aos papéis tradicionais de gênero, isto é, pelo reforço de um modelo patriarcal, em que a mulher assumia uma posição subserviente à figura masculina.

Se, por um lado, a tentativa de acompanhar o progresso e industrialização internacional era um desejo iminente, por outro, a ideologia patriarcal, ávida por restituir a posição masculina no lar, um tanto desmistificada pela possibilidade de a mulher também chefiar a família, tentava voltar a exercer o domínio de sempre. A classe média estava em ascensão e, junto a ela, a necessidade de recuperar valores de bases tradicionalistas. […] Se o Brasil acompanhou, à sua maneira, as tendências internacionais de modernização e de emancipação feminina — impulsionada com a participação de mulheres no esforço de guerra e reforçadas pelo desenvolvimento econômico -, também foi influenciado pelas campanhas estrangeiras que, com o fim da guerra, passaram a pregar a volta das mulheres ao lar e aos valores tradicionais da sociedade. (BASSANEZZI, 2007)

A criação da mulher moderna, portanto, baseava-se na inserção do público feminino na sociedade de consumo, com a ascensão de revistas e peças publicitárias voltadas para as mulheres, ao passo em que os conteúdos veiculados nesses produtos contribuíam para a manutenção da estrutura patriarcal vigente. Assuntos como moda, beleza, culinária, cuidados com o lar, fotonovelas e outros conteúdos direcionados para o público feminino se tornaram verdadeiros guias de comportamento para a mulher moderna, fundamentando-se na defesa e a valorização de valores como o matrimônio, maternidade e dedicação ao lar, “os pilares nos quais a mulher dos anos dourados se ancorava” (BRIGLIA, 2010, p. 208).

Consolidando sua importância e centralidade entre as revistas femininas, a Capricho chama a atenção pela influência exercida na construção e reprodução de determinados ideais acerca do “ser mulher” na sociedade do “anos dourados”, como veremos a seguir.

O início da revista: o ano de 1952

A partir desse contexto, podemos pensar como essas construções sobre a feminilidade se apresentam e se impõem sobre as capas da revista Capricho, durante a década de 1950. Em sua primeira edição, a revista chama a atenção pela já citada chamada fazendo referência ao seu conteúdo:

18 de junho de 1951

A capa apresenta um tipo de imagem bastante típico dos anos 50: as fotografias pintadas, que se caracterizam por ser um híbrido entre a fotografia, o retrato e a pintura. Assim como nessa edição, as capas da Capricho no ano de 1952 chamam a atenção pela presença de quatros elementos principais: a imagem — que ocupa todo o espaço do papel — , o nome da revista, o slogan “Uma apaixonante cinenovela completa” e o título da fotonovela presente naquela edição. A presença de conteúdo escrito é, desse modo, escassa, ocupando um espaço reduzido da capa.

Agosto e novembro de 1952, respectivamente

A centralidade conferida às imagens não é em vão: é notável o retrato de cenas que se dialogam com o conteúdo das fotonovelas, isto é, a presença de casais em situações tradicionais às histórias de romance. Segundo Raquel de Barros Pinto Miguel, em sua tese A revista Capricho como um lugar de memória (décadas de 1950 a 1960) (2009), as fotonovelas constituíam o carro-chefe da revista, com histórias que abordam temas como o amor, a família e o romance, tendo como aspecto central a relação amorosa entre um homem e uma mulher. Essas histórias funcionavam como uma “janela para o mundo”, permitindo um momento de escape da vida doméstica pelas leitoras da revista.

No que tange à possibilidade de inserir as mulheres na vida urbana, as fotonovelas serviriam como uma forma de apresentar a suas leitoras, e possíveis leitores, novos hábitos e comportamentos associados à vida urbana, trazendo, em suas páginas, modos e modas a serem seguidos e copiados, desde o corte de cabelo, os penteados e as roupas até maneiras de agir, de namorar, de sonhar (MIGUEL, 2009, p. 145)

As fotonovelas, desse modo, funcionavam como um modo de “educar” a mulher moderna, ditando os modos de agir, se portar e se apresentar perante à sociedade, além de promoverem valores e perspectivas que consideravam o amor romântico e o casamento (inclui-se a dedicação ao lar e a subserviência ao marido) como objetivos a serem seguidos por toda a mulher.

O formar (no sentido de constituir) prevalece sobre o informar. Esta colaboração da revista na manutenção de padrões, de relações tradicionais de gênero, também pôde ser verificada nas edições examinadas, onde é possível verificar a existência de um discurso hierárquico e tradicional, no qual é sustentada a divisão desigual entre homens e mulheres, bem como a normatização da sexualidade dos jovens, visando a construção de um modelo de família tradicional e hierarquizado (MIGUEL, 2009, p, 24).

Nessa perspectiva, as capas da Capricho do ano de 1952 funcionam como uma pequena introdução ao conteúdo das fotonovelas, com a perpetuação do ideal de feminilidade apresentando nessas histórias, um que solidifica a posição da mulher moderna como “a moça de família”, dedicada ao marido e à família.

1955 a 1959: A consolidação da Capricho

Ao longo da década de 1950, a revista foi ampliando o seu escopo de conteúdos. Já em 1955, grande parte das páginas era dedicada a matérias sobre moda, beleza, culinária e comportamento, além da presença de diversas peças publicitárias. Essas mudanças podem ser observadas já na capa da revista, que passou a priorizar fotos que não necessariamente se relacionavam com o conteúdo das fotonovelas, além da mudança do slogan da revista.

Abril e maio de 1955, respectivamente

Nas capas de 1955, é possível perceber a presença de imagens que focam na figura feminina, retratadas com estilo típico da moda da época, com vestimentas, penteados e maquiagem em consonância com as tendências de beleza da década. Na capa de maio de 1955, é notável a aproximação da capa com os novos rumos tomados pela revista, com a modelo sendo retratada na frente de um parede com quadros de diferentes modelos de roupas, também em acordo com os padrões da moda do período.

O título e o conteúdo das fotonovelas aparecem em reduzidas chamadas, perdendo a centralidade que possuíam nas capas do início da revista, além, é claro, da escolha por imagens que não necessariamente se relacionam com o conteúdo das histórias trazidas pela edição da Capricho. Nota-se, portanto, que as capas passam a ter como foco a questão estética, com foco na moda e beleza através de fotografias de modelos vestidas de acordo com os padrões da época.

Essa mudança foi acompanhada também do novo slogan da Capricho: “A revista mensal da mulher moderna”, presente na parte superior das capas. O novo lema dialoga diretamente com a ideologia dos anos dourados, período marcado pela busca pela modernização da sociedade e economia brasileira.

Com isso em mente, podemos pensar em como as capas da Capricho constroem determinados ideais de feminilidade seguindo esse princípio da modernidade. Além da ênfase num modelo “tradicional” de mulher, voltado para o casamento e a domesticidade, através de suas capas, a revista constrói a imagem da mulher moderna como aquela que é elegante, vaidosa e atenta à moda e aos padrões da época. Nota-se a presença unânime de mulheres brancas, com vestimentas típicas da alta sociedade brasileira, além de um ideal de beleza importado e profundamente americanizado.

Esse ideal persistiu até o fim da década na revista, como retratado nas capas de 1959.

Fevereiro e outubro de 1959

Nessas capas, é possível notar, assim como nas capas de 1955, a presença central da figura das modelos na composição da imagem, as quais estão vestidas segundo a alta moda do período. A escolha dos figurinos, jóias e penteados, além da maquiagem leve, busca transpor a feminilidade e o “glamour” das mulheres da alta sociedade do período para as capas, captando a atenção das leitoras.

Na época, a grande referência era o chamado “New Look”, originado nas coleções da grife Dior. Prevalecia-se silhuetas hiper femininas, com trajes que prezavam o luxo e a sofisticação. A beleza e o cuidado com a aparência também se fazem presente com grande intensidade, através da promoção de maquiagens que deveriam “realçar a intensidade dos lábios e a palidez da pele, que devia ser perfeita” (referência). Nas capas da Capricho, percebe-se o resgate de um estilo de beleza feminina que incorpora todas essas características, o das “ingênuas chiques”, encarnado por figuras como Grace Kelly e Audrey Hepburn, sendo, esta, inclusive citada em uma das chamadas da edição de outubro de 1959.

Este ideal de beleza dialogava diretamente com a construção da figura da mulher moderna, que deveria ser profundamente feminina e elegante. Contudo, a prevalência desse estilo nas capas da revista não significa que este era o único ideal de beleza existente na época. É possível perceber a presença de disputas e conflitos entre diferentes padrões de aparência e comportamento feminino, como pode ser observado em duas capas de períodos distintos da Capricho.

Outubro de 1955

Nesse sentido, destaca-se a edição de 1955 que traz um suplemento de moda, anunciado na capa da revista. Esta também chama a atenção por seu elemento visual, bastante diferenciado das outras capas do período. Ela apresenta o que aparenta ser uma pintura de uma mulher, retratada dos ombros para cima, com os lábios pintados de vermelho, que ganham centralidade na imagem. Além disso, pode-se argumentar que a capa traz uma representação mais “ousada” da figura feminina para a época: a pintura remete ao arquétipo das femme fatale. Nesse tipo de representação, as mulheres são descritas como profundamente sedutoras e sensuais, que desafiam às normas de gênero, em contraponto à ingenuidade e a hiper feminilidade das “ingênuas chiques”. Aliado a isso, a mulher retratada apresenta um olhar desafiador, não tão docilizado e domesticado como as das outras capas da revista.

Já na capa de dezembro de 1959, é possível notar uma relativa semelhança com a edição de outubro de 1955. As duas apresentam modelos semelhantes: as mulheres retratadas apresentam o mesmo penteado, típicos do período, os lábios vermelhos marcantes… contudo, percebe-se uma diferença significante na maneira que são representadas: na edição de 1959, a mulher da imagem apresenta um semblante tranquilo, frágil, com um olhar dócil, direcionado para baixo.

Dezembro de 1959

Podemos afirmar, portanto, que as capas demonstram um certo embate acerca do que realmente caracteriza a mulher moderna dos anos dourados. Percebe-se uma disputa de diferentes perspectivas sobre a feminilidade que vão ganhando cada vez mais espaço na revista, sinalizando para o que ela se tornaria no futuro, como veremos nas décadas de 1980 e 2010.

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do início ao fim

a construção do feminino nas capas da Revista Capricho