2010: uma década atípica

do início ao fim
12 min readJun 5, 2023

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Emergência dos festivais de música pop, novas tendências da moda, ampliação das pautas de raça e gênero, novas tecnologias e o avanço das redes sociais: esse foi o cenário encontrado pela Capricho nos anos 2010. Na tentativa de se inserir nesse novo espaço, em que as demandas mudam e as discussões passam a se estender para além da materialidade da revista impressa, a CH passa a amplificar seu trabalho no meio digital. No entanto, uma coisa muda: para quem a revista vai produzir seus conteúdos? Se de 1980 aos anos 2000 a Capricho dialogava com as adolescentes e jovens adultas, agora ela muda seu discurso e as pré-adolescentes tornam-se o novo público.

De 1980 aos anos 2010, passaram-se 30 anos e a revista teve que se adaptar ao novo século e suas demandas. Agora, por meio de links e hashtags, a Capricho passa a se comunicar ainda mais informalmente com a sua leitora. Seus discursos, marcados pelo uso de perguntas, verbos no imperativo e o “você” como direcionamento, passam a dialogar com uma juventude inserida no meio digital, ambiente em que a globalização se impulsiona. Assim, como instruir as jovens sobre assuntos que elas têm acesso por essas outras vias, sempre mais atualizada que uma revista quinzenal? A Capricho tenta responder essa dúvida fortificando seu espaço na internet.

Vida de Garoto, Galera Capricho e Família Sampaio: essas são algumas das webséries produzidas pela marca nos anos 2010. Todas publicadas por meio do canal do YouTube, responsável também por lançar algumas figuras públicas presentes até os dias atuais — como é o caso de Manu Gavassi, Nah Cardoso, Tata Estaniecki e Rafa Uccman -, são exemplos claros dessa imersão nas plataformas que ganharam espaço na década. Por meio dessas produções, a Capricho reitera seu papel na construção da identidade das jovens que a acompanham. Quem são os meninos que elas deveriam se interessar? Quais artistas elas deveriam gostar? Como elas deveriam agir?

Essa mudança editorial, no entanto, é mais presente na superfície do que em todo o conjunto. A revista, mesmo sendo direcionada cada vez mais para meninas jovens, continua a ser chefiada por lideranças masculinas da família Civita. Ora, e quem melhor para decidir sobre os gostos da juventude que os homens do mercado editorial? Assim, apesar dos anos que se passam, alguns elementos que constroem a identidade feminina se perpetuam no conteúdo da revista e as capas, como vitrines dessa venda de valores e noções, servem como meio de análise sobre quais são esses elementos

Edições: 14 de março, 28 de março e 6 de junho de 2010, respectivamente
Edições: 20 de junho, 15 de agosto e 29 de agosto de 2010
Edições: janeiro, fevereiro e junho de 2015

Entender a função pedagógica dos meios de comunicação é essencial para o entendimento sobre como a Capricho desempenhou esse papel na construção da autoconsciência feminina ainda na pré-adolescência. Essa execução pode, então, ser explicada a partir dos segmentos a que as chamadas presentes nas capas se referem. Aqui, dividimos em quatro grandes setores: sexualidade e relacionamentos; moda, corpo e beleza; entretenimento e comportamento.

Primeiro, comecemos pelo carro-chefe da revista: sexualidade e relacionamentos.

O assunto favorito das meninas dentro de um universo social marcado pela heteronormatividade e a preconização do olhar masculino sobre elas, a questão da sexualidade e o tópico sobre relacionamentos são os mais presentes na revista. Dentre os vários exemplos visíveis nas capas analisadas, alguns valem o destaque, como é o caso da chamada da edição de 20 de junho de 2010.

“O que se passa na cabeça deles?” é a pergunta que não quer calar. Como os rapazes, o eles em questão, gostariam que as meninas fossem? Do que eles gostam? O que eles pensam, afinal? Com essas perguntas, a leitora busca um direcionamento sobre quem são esses rapazes por quem ela se interessa. Como entendê-los? A revista tenta desvendar e aconselhar a amiga em busca de ajuda.

As dúvidas quanto aos garotos — ou, mais especificamente, quanto aos gostos que eles compartilham — se faz presente em outras capas, como é o caso da primeira edição do mês dos namorados de 2010:

“Qual o look certo para conquistar? Os meninos contam” e “1 garota, 5 encontros; Revelamos os segredos da atração” estampam a edição do mês do dia dos namorados. A busca é, então, pelo dito namorado, mas, para isso, alguns truques são necessários, como trapacear e perguntar para a sua amiga CH (Capricho) do que é que eles gostam e como conquistá-los. Esse valor dado ao olhar masculino, em busca da validação e do amor romântico, sempre heteronormativo, é presente em praticamente todas as capas. A figura da garota e a forma como ela se apresenta parece estar atada à forma como ela é enxergada por esse outro.

E por falar no mês dos namorados…

A edição do dia 6 de julho de 2010 é marcante por si só: foi lançada com três capas diferentes, cada uma com um ídolo teen que encantaria as jovens leitoras — no caso, Luan Santana, Fiuk e Justin Bieber. O conteúdo, fora aquele relacionado ao artista da capa, é o mesmo nas três versões e majoritariamente se trata do segmento que abarca sexualidade e relacionamentos.

Em 2015, já em regime mensal de publicações, a edição de junho foi a última da revista impressa. Na capa, protagoniza o antigo casal Demi Lovato e Wilmer Valderrama, ambos artistas.

A escolha da foto em que Demi Lovato usa um vestido vermelho, o título “Love story” para se referir ao desenvolvimento do casal e o letreiro “edição do amor”, localizado acima do nome da revista, dão o ritmo da publicação. O mês dos namorados finaliza o ciclo da revista física e mostra qual a proposta dela, nesse quesito: encontrar o par romântico tão desejado pela leitora. A mulher, ou melhor, a menina existe a partir do relacionamento — heterossexual — em que ela se envolve ou deseja se envolver.

Mas também vale lembrar… da edição de 15 de agosto de 2010.

Das capas selecionadas, essa é a única que apresenta uma menção à não-heterossexualidade. No entanto, a mesma capa que apresenta a chamada é aquela em que está estampado o Colírio Renan Grassi e sua busca por uma namorada. Assim, vê-se o trânsito constante que a Capricho faz entre se mostrar como um veículo “a frente do seu tempo” e o de ser mais um produto da época em que é feito. A heterossexualidade presumida, por assim dizer, se quebra em uma única manchete. No mais, outras meninas, lésbicas ou bissexuais, não teriam o apoio da dita amiga para se relacionarem com o outro, visto que ele não é ele, e sim ela.

Moda, corpo e beleza

Outro segmento forte na revista trata-se sobre o autocuidado e hábitos de consumo das leitoras. Com dicas de como pintar as unhas, como seguir as novas tendências da moda, como emagrecer ou como melhorar a maquiagem, nos anos 2010 a revista apresenta às meninas pequenos tutoriais de como ser mais bela, segundo seus parâmetros — que se estendem para além da revista.

São várias as menções, nos dois anos analisados, sobre dicas de beleza. Quanto ao corpo ideal, no entanto, essa apresentação é mais silenciosa. A revista, nesse critério, se posiciona mais pela ausência do que pela presença: não há mulheres gordas representadas nas capas. Com as “superdicas para murchar a barriguinha”, a revista tem uma diretriz clara sobre qual seria o modelo ideal para que as meninas se vejam como mais belas e assim sejam vistas pelo outro e o não aparecimento de mulheres belas que combatam essa ideia é ainda mais expressivo.

A revista, em 2010, serve, então, como mais um impulsionador de noções sociais pré-existentes do que como forma de quebra desses padrões.

Em 2015, no entanto, uma mudança é percebida. Cinco anos se passam e, diante da emergência de debates sobre body positive e aceitação do próprio corpo, a revista precisa reinventar seu discurso.

O corpo é o que dele se diz, isto é, o corpo é construído, também, pela linguagem. Ou seja, a linguagem não apenas reflete o que existe. Ela própria cria o existente e, com relação ao corpo, a linguagem tem o poder de nomeá-lo, classificá-lo, definir-lhe normalidades e anormalidades, instituir, por exemplo, o que é considerado um corpo belo, feminino, jovem e saudável. Representações estas que não são universais nem mesmo fixas. São sempre temporárias, efêmeras, inconstantes e variam conforme o lugar/tempo onde este corpo circula, vive, se expressa, se produz e é produzido. (GOELLNER; FIGUEIRA, 2002) — grifo nosso

Assim, duas chamadas se destacam em duas revistas do último ano. Em uma, a aceitação do corpo se faz presente. O entendimento da pluralidade e a mudança do discurso para se adequar a esse novo cenário expressam a tentativa da revista em se reposicionar. Além dessa, a chamada referente ao retorno ao formato natural do cabelo da leitora também reitera esse processo.

A Capricho, novamente, atua na dualidade: ao mesmo tempo em que reforça a importância de seguir a moda vigente, ela também busca se distanciar de discursos agora considerados ultrapassados. A leitora, então, tem sua feminilidade operante nesse espaço, em que ela deve prezar pela sua aceitação e, conjuntamente, usar as roupas certas e as maquiagens mais belas.

E sobre… entretenimento?

Outro segmento norteador da revista está no setor de entretenimento. Estampam nas capas diversos artistas, cantores, boybands, atores, ex-bbbs e casais da mídia. Essas figuras, então, operam no questionamento: esses são os conteúdos que as meninas gostam ou os que elas deveriam gostar?

Ao presumir os gostos das jovens que consomem a revista, a Capricho trabalha como norteadora desses gostos. O “feminino” existe enquanto público-alvo dos rapazes do cenário da música pop e sertaneja. “Do que as meninas gostam?” é a pergunta a ser respondida nesse espaço e ela passa a operar tentando respondê-la. No entanto, vê-se como essa resposta serve como maneira de reiteração de determinadas noções sobre os gostos femininos.

Ao falar das bandas que entrevista, os tópicos também restringem o conteúdo: “amizade, amor e Demi Lovato…”, “o sertanejo mais romântico do mundo”, “…além de romântico, ele é superciumento!”. O sistema de valores perpetuado pela revista, então, se manifesta nessas nuances. Apesar de entender que meninas possam se interessar pelo mundo da música, por exemplo, os elementos que ela utiliza para delimitar quais partes desses assuntos são mais ou menos relevantes demonstram a visão criada e perpetuada por ela sobre feminilidade.

Mais que amiga, um guia de comportamento

Por último, o setor de comportamento é o ambiente em que a relação da revista com sua leitora fica mais explícita. Ao oferecer conselhos, dicas, tentar quebrar determinados tabus e inserir o mundo digital em suas manchetes, a Capricho passa a firmar ainda mais seu papel de amiga. Na verdade, a CH se consagra como uma conselheira mais velha, e, portanto, mais sábia, mas que não julga essa figura a quem seu papel pedagógico se direciona.

Nas manchetes de 2010, duas se destacam: “Pegação na turma: o que fazer quando a galera mistura amizade com ficada?” e “Estou apaixonada pelo meu professor”. Ao falar sobre relacionamentos dentro do ambiente escolar, cada um ao seu modo, a revista tenta imergir no espaço comum dessas leitoras, trazendo as falas delas para o contato de outras. Assim, sua relação de contato se estabelece na intimidade consagrada com a jovem que consome seu conteúdo.

Em 2015, esse espaço parece se pluralizar. Ao tocar em tópicos como o uso de maconha ou a realidade dos trotes na faculdade, ela se moderniza e traz problemáticas ainda mais relevantes para o debate com a leitora. Sem se restringir à visão masculina, como acontece na maior parte dos conteúdos, esse espaço constrói a feminilidade a partir de outros aspectos. Ao entender que as meninas também questionam temas sociais e políticos, ela expande as noções acerca do feminino por meio de interesses diversificados. Mais uma vez sua ambiguidade fica exposta: coloca novas pautas em circulação em algumas matérias, enquanto perpetua a ideia da busca pelo relacionamento heteronormativo em outras.

É possível entender como esse ambiente íntimo criado entre a revista e a leitora funciona como operante para que ela consiga desenvolver seu papel pedagógico. A confiança estabelecida por meio do compartilhamento de histórias e a tentativa de não julgar quem conta essas experiências reitera essa figura da CH como a amiga mais velha. Assim, seus conselhos passam a ser apreendidos menos como uma voz de autoridade e mais como recomendações.

Ainda, é interessante frisar que o espaço concedido pela revista dá voz direta para as leitoras. Mesmo que aborde as questões referentes a relacionamento e sexualidade, esse tópico se diferencia do primeiro ao colocar as meninas como protagonistas. Se na capa de junho de 2010 a pergunta era “O que passa na cabeça deles?”, essa seção muda o direcionamento e quer saber “o que se passa na cabeça delas?”.

Em conclusão!

A revista Capricho, entre 2010 e 2015, viu uma sequência de mudanças sociais e teve que se adaptar a elas. Seu papel pedagógico continua a servir como forma de aconselhar e instruir jovens nos quatro grandes segmentos em que seus conteúdos se dividem. Com o uso de perguntas, gírias e uma linguagem informal, ela tem um discurso que busca se aproximar das meninas que a consomem. No entanto, uma pergunta continua em aberto: quais interesses, desses tratados no periódico, são realmente femininos?

Fica clara, então, a operação ambígua da revista na década, em que se vê a preconização do olhar masculino ao mesmo tempo em que passa a aderir a discursos plurais. Colírios Capricho, casais de Malhação, boybands, tendências da moda, entre outros temas, são colocados como femininos e perpetuados pela revista. Assim, a construção da feminilidade parece continuar dependente dessa direção masculina da revista. A perspectiva trazida pela revista se faz presente dentro de um mundo centralizado na figura masculina, como abordado por Foucault em seu estudo sobre a tecnologia política do corpo, mostrando sua operação na manutenção de visões compactas sobre a feminilidade.

Vale, ainda, o destaque para o fator comercial que direciona a revista. Agora com a marca expandida, a venda de produtos escolares, lingeries e cosméticos serve tanto como espaço publicitário como enquanto forma de reiteração de determinados padrões. A Capricho, então, reforça a necessidade das jovens consumirem produtos do mercado em que se insere, gerando demanda e, acima disso, auxiliando a construir a identidade dessa consumidora. No fim, sua proposta é mais que vender a revista, mas sim um estilo de vida que ora funciona como manutenção de um sistema vigente, ora busca a quebra de determinados conceitos.

Dessa forma, a mídia molda os comportamentos e constrói a identidade do que é ser adolescente na sociedade contemporânea. As circunstâncias trazidas pela publicação aliadas a imagens de ídolos e depoimentos destes ou de outrem (considerados importantes como, por exemplo, os garotos) têm efeito persuasivo nas leitoras que acreditam ser aquela a maneira correta de se comportar. Os “conselhos” dados pelas revistas projetam uma sensação de bem-estar, de agir corretamente e de uma vida ideal e sem muitos conflitos. (RIBEIRO, 2007, p. 480)

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do início ao fim

a construção do feminino nas capas da Revista Capricho